Com expertise de três décadas, Paulo Borges critica a burocracia do País e a falta de planejamento e de investimento. E rebate a pecha de que o setor é supérfluo.
Sob o lema Amo Moda Amo Brasil, Paulo Borges aproveitou a Copa para entrar em campo com uma campanha cuja missão é levar a marca Brasil além-fronteiras. “O problema é esse nosso complexo de vira-lata, que não nos deixa”, reclama, parafraseando Nelson Rodrigues. “Esse é um momento histórico, em que todos os olhos estão voltados para o País, com a realização de grandes eventos esportivos. É importante chamar a atenção para o que nos identifica além do futebol e mostrar onde o Brasil também é campeão”, discursa o CEO da Luminosidade, empresa que promove SPFW e Fashion Rio.
Ele diz esperar, há três décadas, que o governo olhe para a moda como uma indústria que merece respeito. Nada mais natural. Afinal, segundo dados da Texbrasil, trata-se de um segmento que reúne 300 mil empresas formais e representa 5,5% do PIB da indústria de transformação, tendo gerado R$ 140 bilhões em 2012. O setor também é responsável por 1,7 milhão de empregos diretos, sendo 75% mão de obra feminina.
Apesar da aparência de pujança, a cadeia produtiva vai mal, obrigado – vítima, principalmente, das importações fraudulentas e da “falta de inteligência”. Como resolver? “Mudando as estruturas políticas e econômicas que nós temos. Não há setor que consiga ser competitivo com essas regras. O que salva o mercado nacional ainda é o consumo interno, e vai continuar salvando”, afirma ele, defendendo, em seguida, a implantação do imposto único, cobrado na fonte do consumo.
Borges recebeu a coluna em seu escritório, no Itaim, no dia em que lançou a campanha – cujo símbolo é uma bola que faz referência a Copas passadas, com a costura aparente. A seguir, os melhores momentos da conversa.
A moda é cara no Brasil?
Não é só a moda. Tudo aqui é caro – água, telefone, luz, internet. A gente vem dizendo isso há vinte anos e nada foi feito para mudar esse sistema, que não pensa a produção, não pensa a construção de valor de marca. Esse mesmo efeito ataca a economia como um todo. Não tem solução para o Brasil que não seja a partir de uma grande reforma. Enquanto isso, assistimos a uma desindustrialização severa – que acontece até menos na moda. Somos grandes produtores de lã, produzimos o melhor casulo de seda do mundo. Mas o que acontece? A Hermès compra praticamente tudo e manda para a Itália. Lá, desenvolve o fio da seda, faz os lenços e exporta pra cá.
Ou seja, continuamos vendendo matéria-prima e comprando a peça manufaturada.
Exato. Somos o quinto maior produtor de algodão do mundo, o segundo maior produtor de denim. Também as fibras sintéticas são muito fortes no País. A malharia brasileira é muito competitiva no mundo inteiro, tem qualidade. Mas claro que o preço é um problema. Se comparar com a malha chinesa, a deles é mais barata. A da Turquia também.
Não seria o caso de o governo olhar com um pouco mais de atenção para essas importações, já que não há como competir com os chineses, por exemplo?
Mas aí entra um outro problema que se discute pouco. O Brasil não tem controle de seus portos e de suas fronteiras. O que acontece muito, por exemplo, é um navio chegar com documentação na qual consta um carregamento de gravatas (que pagam um imposto mínimo), mas estar cheio de camisas, ternos, blazers etc. Ou seja, ainda existe uma roubalheira enorme na entrada de produtos no País, que não se consegue controlar.
Como mudar o cenário?
Mudando nossas estruturas políticas e econômicas. Não há setor que consiga ser competitivo com essas regras. O que salva o mercado é o consumo interno, e vai continuar salvando.
Você enxerga no futuro as lojas se transformando em ambientes virtuais, com venda apenas via e-commerce?
Não, porque existe um negócio chamado experiência da compra. Alguns itens você vai comprar pela internet, mas não tudo. A experiência é conjugada. Uma coisa que já acontece no varejo é que as lojas têm se transformado, cada vez mais, em cenários. Hoje existem aplicativos online pelos quais você compra via internet, reserva o produto e vai à loja provar. Coisas mais fáceis, como camisetas, acredito que serão vendidas cada vez mais via e-commerce, mas roupas mais estruturadas, com valor agregado muito alto, não.
Os canais vão se somar?
Eles se ajudarão mutuamente. Porque o mercado, ao mesmo tempo em que cresce, vai se reorganizando. É mais difícil para quem tem mais inovação, valor agregado e design? Sim, é. Mas não só no Brasil. Lá fora também. Essa crise brasileira sobre a qual a gente discute nada mais é do que o reflexo de uma crise sistêmica mundial. A moda no mundo inteiro está passando por um processo de revisão, de transformação. Isso é um fato e começou no início dos anos 2000, quando surgiu o conceito de fast fashion. Foi um divisor de águas, que começou com a pirataria, num processo de cópia deslavada. (risos)
Culpa do próprio sistema?
Até por influência da internet. Porque as pessoas passaram a ter acesso mais rápido à informação. Imagine: uma loja cria uma nova lógica de venda, com preço mais baixo, com informação nova, mesmo que o tecido não seja o melhor – nem o corte ou o acabamento. Mas existe uma massa de consumidores louca por aquela informação de moda. E vai consumi-la. Esse processo contaminou todo o sistema. É como um vírus. Fast fashion foi um vírus que infectou o sistema de moda. E os grandes magazines, ao invés de combater esse vírus, se aperfeiçoaram para atender a demanda. Na esteira, as marcas de roupa começaram a investir em estilistas reconhecidos capazes de criar coleções com esse perfume de lançamento, de inovação. A soma desse processo econômico de produção com a internet levou a uma revisão do processo da moda. Você tem de ser rápido, criativo e também competente para conseguir vender a um preço justo…
O que é o preço justo?
Aquele que te permite ganhar algum dinheiro, agradar o consumidor e pagar o processo.
Esse é o grande desafio.
O maior deles. O desafio da gestão. Nesse cenário global, onde o Brasil é prejudicado? No sistema político e econômico. Porque, lá fora, você tem uma capacidade econômica de investimento que nós não temos. Lá fora você tem matérias-primas à disposição do mercado que nós não temos aqui. Comprar matéria-prima mais inovadora e barata é uma dificuldade tremenda. E por quê? Por causa dos impostos, da legislação, da infraestrutura. É uma cadeia produtiva que não foi preparada. E veja outro absurdo: o Brasil nunca se preocupou em construir marca. Olha o que o estamos fazendo com a Copa do Mundo! Destruindo a possibilidade de criar uma marca do Brasil.
O que você faria?
Investiria em qualidade, produção, desenvolvimento. Na parte industrial, a gente até tem visto investimento em inovação e tecnologia. Na parte de confecção, falta trabalhar a qualificação da mão de obra. Se bem que esse é um problema geral do Brasil, o que mais se ouve hoje em dia é sobre a falta de qualificação da mão de obra brasileira em todos os setores da economia. Isso tem a ver, basicamente, com educação.
A saída seria as empresas treinarem seus funcionários?
Sim, claro. Acontece com muitas empresas brasileiras. Só que há um porém: a maioria delas tem acesso a recursos financeiros estatais que a moda não tem. Para desenvolver a moda é preciso mais do que crédito, é preciso que o governo veja o setor com estratégia, com inteligência, como uma causa para ser defendida. Só isso é capaz de acelerar o processo de desenvolvimento. O que fortalece a cadeia da moda? Marcas com capacidade para espalhar seus produtos pelo mundo. É a tal da economia criativa que o Brasil não conseguiu trabalhar ainda.
Não é culpa também de um certo comodismo histórico?
Um pouco. Nos anos 80, o linho era um sucesso no Brasil, e a Braspérola era a empresa mais disputada. Todo mundo fazia fila, de joelhos, para conseguir comprar uma cota de tecido da Braspérola. Esse sistema acomodou o mercado. Outro ponto que acomodou o varejo foi a hiperinflação, mãe da pronta-entrega. O sistema ficou acomodado a trabalhar com curtíssimo prazo.
Iniciativas como a da ministra Marta Suplicy, que autorizou captação de recursos via Lei Rouanet para grifes brasileiras, podem ser a solução?
Não, não vão resolver nada. São um equívoco. Mais um vento para confundir as pessoas.
Há muita polêmica em relação ao uso da Lei Rouanet.
Percebo um certo preconceito. E com a moda ainda mais, porque não se vê o setor como cultura. Acham que é um processo supérfluo. Já ouvi de um jornalista que, “num país com tantos problemas, como é que moda pode ser importante?”. Está mais do que provado que, se você educa uma mulher, educa uma família. Está mais do que provado que, se você dá emprego a uma mulher, dá emprego a dez pessoas da família. A indústria da moda é a que mais contrata mão de obra feminina, disparado.
Há pouco tempo, a moda inglesa estava quebrada e, graças a ações do governo, voltou a ser pujante, com lançamentos de diversos novos estilistas. Por que não conseguimos fazer algo assim aqui?
Porque, lá fora, você tem o estilista, o showroom e a venda. E entre o showroom e a venda, existe um personagem que nós não temos. É o produtor. Esse cara é um industrial, que tem capital e a capacidade de pegar uma coleção, produzi-la e distribuí-la, repassando uma porcentagem aos estilistas.
E eles querem isso?
Claro que querem! E há muito tempo. Isso funciona no mundo inteiro. O que acontece é que não houve incentivo no País para que a indústria da moda crescesse. Para se ter uma ideia, quando eu comecei a produzir desfile para a Zoomp, nos anos 80, a marca começava a fazer sua alfaiataria no Uruguai. Porque era muito mais barato. Hoje, quem tem grande escala está fazendo isso na China. E pode quebrar a cara.
Por quê?
É só ver o que aconteceu com a Le Lis Blanc. O soluço que eles tiveram foi um problema de pedido antecipado. Era um pedido gigante, que não deu certo. Acabou atrasando. Uma outra marca quebrou por causa disso. Era final de ano, e os pedidos todos ficaram presos na alfândega.
A questão alfandegária também é um problema, não?
E pode somar a isso infraestrutura precária, excesso de burocracia, falta de inteligência e planejamento, falta de plano de investimento.
Há algum exemplo a ser seguido na indústria da moda?
Olha, a Reserva está fazendo uma coisa que eu acho ótima: ela entrega ao consumidor a nota fiscal do produto com um explicativo de todos os valores que constam daquele preço final, incluindo o lucro da empresa. O ideal seria que todas as lojas e marcas fizessem isso. Mas aí a gente tem de voltar àquelas 300 mil empresas que fazem parte da indústria da moda. O que funciona para uma, não funciona para outra. Ou seja, é mais fácil para o governo pensar em ajustes para a indústria automobilística, por exemplo, que tem poucos players. O ideal seria mudar a forma de cobrar o imposto. Optar pelo imposto único, na fonte do consumo. Mas isso ninguém faz, estou esperando há 30 anos. /SONIA RACY E DANIEL JAPIASSU
http://blogs.estadao.com.br/sonia-racy/o-fast-fashion-e-um-virus-que-infectou-a-industria-da-moda/
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